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quarta-feira, maio 05, 2004

Há textos que merecem estar entre os mais lidos do mundo. Este é um deles:


Pietà


Sentamo-nos os dois. O frio, perpendicular, abafa qualquer comiseração.
Sempre vagabundos de nós, tudo nos falta menos a rua. Esta noite um som
ecoa, a luz, acre, levanta o peso do calor, e eu não sabia, calada e não
refeita, de teu sono vigilante que já não me pertence. No quarto anterior,
dormias em meu ventre, hoje o tronco no colchão firme recusa um qualquer
sincronismo com o meu desejo. Somos luz comum, porém, caminho
idêntico e diverso, o que atrai e repele, breve hesitação a minha, a de quem
transporta o recém-nascido a um ritmo novo.
Se eu chamar tua voz para meu lado, arranco a flor mutilada à superfície
da água. Mas teu labor é nocturno, ponto instável, díspar; a dúvida,
uma interrogação insidiosa. Era um segredo, o nosso, amor lento, corpo
que nos cerra e mais tarde se extingue. Se espreito, o menino morre.
Fecho então os olhos, e aprendo a ler sobre o texto o longo breve rio
entre ti e o outro, o sentido da inverosimilhança, a ausência radical e lisa.
Vou envelhecer tentando segurar a maternidade no peito.



Ana Marques Gastão

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